top of page
  • Facebook
  • Instagram

O admirável velho mundo novo

Imagem de Jesus Paula Carvalho

por Jesus Paula Carvalho




Ora veja senhor, sei e não sei, por que me tornei médico.


ree

O doutor Moraes, porém, já sabia que seria médico mesmo antes de nascer. Seu nome é a prova disso.


Ele tem tantos nomes, que não se pode escrever em uma única linha, e no seu receituário, só cabem por inteiro, o primeiro e os últimos nomes. Os demais tiveram que ser abreviados no meio.


Poderia ter um nome como Moraes Filho, Junior, ou Neto, mas isto contemplaria apenas o seu pai e o avô, e os tios teriam de ficar de fora.


Toda a família dele é feita de médicos e de nomes pomposos. E tem também os parentes por parte da mãe, que não contribuíram para o nome dele, mas que são nomes de ruas e praças, e tem retratos pendurados em paredes de academias.


Na minha árvore genealógica, entretanto, o braço mais longo chega até os meus avôs, onde um deles era carroceiro, e não conseguia calçar as botinas depois que a roda do carro de boi passou sobre o dedão do seu pé, que consolidou virado para cima. Nenhum médico havia por perto, ou mesmo à distância.


Na casa do doutor Moraes, tem um armário antigo que abriga instrumentos herdados - relíquias históricas que passaram de pai para filho como um estetoscópio de Pinard, feito em marfim, e que era usado para auscultar os batimentos cardíacos do bebê, um termômetro de mercúrio, uma caixa metálica cheia de pequenas pinças usadas para remover espinhos, pregos ou pequenos corpos estranhos de feridas e orifícios, seringas de vidro, cabo metálico e lâminas de bisturi, uma lanterna, e até um inalador de éter ou clorofórmio.


A casa da minha infância, embora simples, não perdia para a casa do doutor Moraes, pois ali também havia muitos aparatos e estratégias para tratar enfermos, e quando digo enfermos estou me referindo às pessoas, e aos animais, que também padecem de grandes males, e por isso mesmo era justo que recebessem os mesmos cuidados.


Numa gaveta de Dona Maria-Véia, como era conhecida a vizinha da minha avó, havia uma colher de metal prateada, toda chamuscada. Era usada no ritual que se repetia nas casas das mulheres paridas da redondeza.


Depois de cortar o cordão umbilical com tesoura, Dona Maria-Véia aquecia aquela colher no fogo de lenha, até ficar quase incandescente. Depois colocava o fundo fumegante da colher sobre o coto do umbigo do rebento para estancar o sangramento que por vezes persistia.


Dona Maria-Véia era parteira reconhecida na região, mas já sentia o peso dos anos, e a sua visão se mostrava turva. Numa de suas assistências a uma mulher parida, confundiu o coto do umbigo com o pequeno órgão genital do nascido, e não fosse o olhar atento da mãe parida, por pouco não teria realizado uma emasculação no rebento.


Além da colher de metal chamuscada, dona Maria-Véia levava uma garrafa de vidro vazia, para o caso da mãe-do-corpo não se desprender espontaneamente depois do nascimento.

Nessas ocasiões pedia para a mulher parida colocar o bico da garrafa na boca, e soprar com toda a força, para expulsar a placenta. E se mesmo assim não obtivesse sucesso, ainda restavam duas alternativas: a mulher deveria colocar o chapéu do marido com a copa invertida na cabeça, prender a boca com as duas mãos e soprar com força, e a terceira alternativa consistia em uma oração, cujas falas ela entonava e pedia para a parida repetir.


Havia ainda muitos mistérios depois do nascimento, para os quais dona Maria-Véia tinha soluções. Crianças que nasciam fora do tempo costumavam amarelar na pele, no branco dos olhos e embaixo da língua. Se o amarelão persistisse era sinal de carência de providências urgentes, por perigo de morte.


Se o dia fosse de sol, sem ventos de friagens extremas, o mais certo era colocar a criança deitada sobre uma grama verde, com o rosto voltado para o sol da manhã.


Depois se desenhava o contorno da criança na grama, de forma a se poder talhar o molde do seu corpo em grama. O procedimento deveria ser realizado com a criança deitada sobre a grama verde, no sol da manhã. No final o molde de grama deveria ser recolocado no seu lugar, tomando tino para que as raízes da grama ficassem viradas para o sol, ao contrário da posição original.


Nos dias chuvosos, ou de friagens extremas, não era de bom alvitre usar esta estratégia. O melhor era preparar um chá de picão, uma planta de flores amarelinhas e cujos espinhos grudam na roupa.


Numa bacia com o chá de picão a criança deveria se banhar, e se possível tomar um pouquinho da infusão. Não haveria icterícia que resistisse a tais procedimentos.


A erva-de-santa-maria é plantinha rasteira que se encontra amiúde nos roçados. Colocada no pilão e amassada, resultava em um macerado verde, que na forma de cataplasmas podia curar inflamações e áreas machucadas. Se bebido o seu caldo, expulsava vermes e lombrigas da barriga das crianças.


A arte de curar nos escondidos do sertão não se limitava ao uso de plantas. Era preciso reconhecer o mal e tomar atitudes em tempo. Algumas crianças não sobreviviam ao sétimo dia após o nascimento. Era o Mal do Sétimo Dia.


Os pequeninos paravam de sugar o leite da mãe, ficavam irritados, com choro constante, e o coto do umbigo ficava inflamado. Adriana, a boticária desaconselhava o uso de pó de café ou memo estrume de gado para fazer cicatrizar o umbigo, coisas que muitos ainda faziam nas redondezas.


Nas crianças cujas mães secavam o leite, a pele se tornava grudada nos ossos da espinha. Era o Mal de Simioto, e os pobrezinhos ficavam com aparência de macacos.


Era preciso aplicar óleo de vegetais, ou mesmo banha de porco para desgrudar a pele dos ossos da coluna, e a criança voltar a ter aparência humana.


Muitos anos mais tarde, nas salas de aula na faculdade, ou lendo os tratados de medicina interna, reencontrei vários dos personagens da minha infância e as suas astúcias na arte de curar.


O doutor Moraes me pondera, que a luz ultravioleta do sol da manhã era o princípio que curava o mal amarelo das criancinhas. Concordo, mas por caminhos tortos, tanto a dona Maria-Véia, quanto o doutor Moraes faziam a mesma coisa.


Os macerados da erva-de-santa-maria são ricos em piperazina, uma substância que tem potente ação anti-inflamatória, e quando ingerida atua como vermífugo.


O Mal do Simioto, argumenta o doutor Moraes, era desnutrição severa, e os óleos absorvidos pela pele ajudavam a dar sustento àqueles pequenos. O mais conveniente era atinar para não deixar o leite da mãe secar.


A obtenção do conhecimento científico não me fez desmerecer os conhecimentos ancestrais. O que praticamos hoje é só a evolução de práticas passadas, que o filtro do tempo depurou e aprimorou. Nossa jornada neste mundo é uma sucessão de coisas geniais, e outras que parecem bizarrices.


Meu colega de bancada no laboratório da faculdade era um moço espirituoso e debochado. Os seus avós, fazendeiros de muitas posses no interior, contavam os dias que o neto haveria de retornar à cidade natal, com um diploma de doutor, e uma placa de metal dourada para colocar na porta do consultório que já estava pronto para recebê-lo.


O rapaz, entretanto, gostava de gozar os prazeres da vida na capital, e para obter recursos extras, enviava cartas à avó solicitando dinheiro para comprar instrumentos médicos.

Certa vez, observando uma célula ao microscópio ficou fascinado com uma estrutura chamada aparelho de Golgi, e outras organelas chamadas mitocôndrias.


A mitocôndria é considerada a "usina de energia" da célula porque sua principal função é armazenar e transportar energia para as atividades celulares.


O aluno escreveu para a avó pedindo para ela enviar recursos para a compra de um aparelho de Golgi e algumas mitocôndrias. Com o dinheiro recebido da avó comprou um barco para velejar nos finais de semana.


Foi se o tempo que para ser um bom médico bastava saber a localização dos órgãos dentro do corpo humano, e uma dúzia de fórmulas magistrais para curar ou aliviar os sintomas.


Nosso conhecimento migrou dos órgãos para as células, e das células para as moléculas. E hoje tentamos decifrar a conversa cifradas das moléculas que transitam por dentro do nosso corpo levando mensagens de uma célula para outra, em órgãos distantes. E este admirável mundo novo segue seu curso de descobertas infinitas.


Ser médico é saber que toda verdade é transitória, e que o grande desafio é perceber que todas as moléculas, células e órgãos fazem parte de uma maravilha maior, complexa na estrutura e na significância, que se chama o Ser Humano.


Repito, portanto, senhor, sei e não sei, por que me tornei médico.


Comments


bottom of page