A malformação do embrião e o aborto
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- 23 de set.
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por Eudes Quintino de Oliveira Júnior
O ser humano, em razão de sua própria natureza, guiado pela inteligência de que é dotado, esbarra frequentemente em fatos novos que introduzem conceitos e valores diferentes daqueles que originariamente registrou, desde sua infância até a idade madura. Isto porque a conceituação ética finca raízes profundas e dificilmente, numa primeira tentativa, possibilitará uma radical mudança de pensamento.
Quando se fala em abortamento, que é o termo correto para designar a interrupção da gravidez, vem à tona a ojeriza ética pelo procedimento, que é considerado um ato atentatório contra a vida. A lei, com sua função homologatória do pensamento da sociedade civil e, com base em critérios próprios, estabelece as causas permissivas e impeditivas do abortamento, desprezando qualquer conotação religiosa, em razão da laicidade prevista na Constituição.
Assim pontuando, é interessante recordar que o STF já teve oportunidade de se manifestar a respeito do abortamento de feto anencéfalo, na ADPF - arguição de descumprimento de preceito fundamental 54. Para o deslinde do tema polêmico foram realizadas audiências públicas para interpretar os pensamentos de vários segmentos, tais como religiosos, científicos, médicos, jurídicos e, principalmente, o da sociedade civil. Cada um deles trouxe sua contribuição a respeito do tema, visando auxiliar os ministros da mais alta Corte no julgamento, que contabilizou oito votos a favor do acolhimento da pretensão e dois contrários. O Estado Democrático de Direito possibilita este compartilhamento da cidadania no julgamento. Ouvir todas as vozes favoráveis e contrárias é um instrumento eficaz para se realizar uma boa Justiça. Afinal é do atrito das pedras que brota o fogo.
O Código Penal brasileiro, como é sabido, contempla somente duas hipóteses de abortamento. A primeira, para salvar a vida da gestante e a segunda proveniente de estupro. Em ambos os casos, há necessidade de comprovação das situações para justificar o ato do abortamento, sem, no entanto, qualquer exigência de deferimento judicial para o procedimento. Um tertium genus, em razão da decisão da Corte Maior, pretende se incorporar às causas permitidas. Inquestionavelmente, terá que ser elaborada a lei por parte do poder competente para operar o acréscimo pretendido.
Ocorre que, além da anencefalia, outras anomalias fetais, como a Síndrome de Body Stalk, Síndrome de Edwards, casos de gêmeos siameses toracoonfalópagos, unidos pelo mesmo tronco, e outras mais, ocorrem eventualmente e inviabilizam a vida extrauterina. O questionamento que se faz é se tem aplicação a decisão proferida pelo STF com relação à anencefalia, exclusivamente.
A decisão proferida tem perfeita aplicação e se apresenta como um meridiano a ser seguido em todos os casos semelhantes. Se o feto é considerado uma spes vitae desde sua concepção, não há nenhum motivo para impedir o seu nascimento, uma vez que é detentor do direito à vida e não pode ser condenado no seu casulo intrauterino.
A própria legislação civil considera o embrião como um nascituro que - na etimologia da palavra e no tempo verbal, com maior precisão, vem a significar aquele que vai nascer - enquanto que o feto portador de uma doença que comprometa sua atividade encefálica, sem qualquer chance de vida fora do útero, não carrega tal garantia. O STF, dessa forma, definiu que a vida em potencial se inicia somente com a concepção in ventre, deixando claro que na fertilização in vitro - quando se manipula o material procriativo do homem e da mulher - não há tal potencialidade.
Trata-se, na realidade, de uma situação acobertada pela hermenêutica, que conta com a analogia para encontrar uma integração jurídica que seja consistente e que possibilite aplicar um entendimento jurisprudencial da Corte Suprema a uma situação semelhante a um novo caso concreto que se apresenta. A hermenêutica, instrumento interpretativo da mens legis, é encarregada, não só de direcionar o texto jurisprudencial, como, também, ampliá-lo para que possa atender a outras necessidades que guardam certa semelhança ou analogia com o fato apresentado. Nesta linha de pensamento, pelas interpretações literária, gramatical, lógica e teleológica, o intérprete poderá conferir a dimensão necessária à decisão da Corte Maior, ampliando-a, como no questionamento presente, dando especial realce para a causa supralegal de exclusão da culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa.
E na sequência de tal entendimento o anteprojeto de lei que propõe a reforma do Código Penal inseriu, taxativamente, de forma ampliativa, a seguinte cláusula de exclusão de ilicitude no inciso III do art. 128 do Código Penal, de aborto praticado por médico, in verbis: "Quando há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais".
Percebe-se, sem qualquer dificuldade, que a decisão da Suprema Corte, como um caleidoscópio que gira para vários enfoques, faz com que o reflexo de sua luz exterior possibilite um sensato diálogo jurídico alicerçado nos princípios constitucionais da dignidade, da autonomia, da liberdade e até mesmo da saúde integral da mulher, também dialoga com a medicina que se encarrega de fazer o prognóstico de letalidade perinatal incompatível com a vida extrauterina, assim como dialoga com a bioética que, dentre os seus princípios, afasta o prolongamento do sofrimento em casos de fetos sem spes vitae.
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