Os cheiros da vida
- Disciplina de Ginecologia da FMUSP

- 6 de ago.
- 6 min de leitura

por Jesus Paula Carvalho
Numa das atuações mais icônicas do cinema, Al Pacino (Frank) interpreta um cego no filme “Perfume de Mulher”. A cena transcorre no interior de um restaurante requintado. A jovem Donna está sentada sozinha numa mesa distante. Frank sente o seu perfume, e com a ajuda de Charlie, seu ajudante de ordens, convida a jovem mulher para dançar um tango. A pequena orquestra executa "Por una Cabeza", a música inunda o ambiente, e o par evolui entre os convivas.

O escritor, filósofo e dramaturgo alemão Friedrich Schiller costumava deixar maçãs podres em sua gaveta, pois dizia que o cheiro forte o ajudava a se concentrar, e a entrar no estado criativo necessário para compor suas obras.
Schiller chamava isso de uma espécie de "inspiração sensorial", e ele acreditava que o estímulo olfativo, mesmo que desagradável para os padrões comuns, servia como um gatilho para sua criatividade. Para escrever, ele precisava sentir o cheiro da podridão.
Schiller é autor do poema "Ode à Alegria", que inspirou Beethoven na sua Sinfonia no. 9 em Ré Menor, e eu me pergunto: Como alguém poder compor uma obra de arte quase celestial, sentindo o cheiro de maçãs podres?
Marcel Proust um dos maiores autores da literatura universal, autor de "Em Busca do Tempo Perdido" revolucionou nossa compreensão do tempo, e da experiência humana, escrevendo sobre a memória, a identidade, o amor, os ciúmes e a efemeridade da vida. Proust descreveu que o sabor de uma madalena molhada no chá, o transportava de volta à sua infância.
Algumas pessoas têm memórias olfativas. É um fenômeno psicológico em que o olfato desencadeia lembranças vividas no passado.
Um presidente do Brasil, em passado não muito distante, se notabilizou pela frase "O cheirinho dos cavalos é melhor do que o cheiro do povo".
Quando fui à escola pela primeira vez na minha infância, ganhei de um parente uma velha bolsa de couro, forrada com um tecido xadrez velho e mofado. O cheiro daquele mofo, jamais se desligou das minhas memórias da escola do bairro do Carapinas.
Um certo dia, eu estava parado no semáforo em São Paulo, quando senti o cheiro penetrante que vinha do motor de um velho caminhão parado ao meu lado. Aquele cheiro repentino e também familiar, me remeteu às lembranças do velho ônibus amarelo, que percorria a estrada de terra da minha infância.
Na rua da minha casa, uma longa fileira de árvores frondosas despeja suas folhas pelo chão nos dias de chuva. O cheiro da terra molhada e das folhas, faz-me abrir as janelas do carro para sentir aquele aroma inconfundível, do caminho que me leva para casa.
Reconhecer os odores não é privilégio dos humanos. Os cães tem capacidade, pelo menos uma centena de vezes maior do que os humano, de reconhecer e distinguir odores. Este aguçado senso olfativo varia nas diferentes raças, e é utilizado para a caça, investigações sobre a presença de drogas, explosivos e restos humanos. Mais recentemente estas habilidades caninas passaram a ser utilizadas para detecção de doenças, e inclusive câncer em algumas comunidades.
Uma pessoa sob forte emoção emita odores diferentes, como resultado de mudanças fisiológicas associadas ao estado emocional. O corpo humano possui um sistema altamente sensível que reage a emoções intensas, como medo, ansiedade, estresse ou excitação, e isso pode impactar os odores corporais.
Existem também os odores "emocionais", ou seja, as pessoas ao redor podem inconscientemente perceber mudanças nos odores corporais, associados a emoções como medo ou perigo. Isso não é necessariamente algo perceptível de forma consciente, mas pode influenciar comportamentos e respostas sociais.
Na literatura, odores, perfumes e aromas estão presentes nas obras de diversos escritores, evocando memórias, sensações ou características de personagens.
Em "O Perfume: História de um Assassino", de Patrick Süskind, um jovem dotado de olfato extraordinário na França do século XVIII, busca criar o perfume perfeito, com cheiros que vão dos mais agradáveis até os mais repugnantes, e isto o leva a cometer assassinatos.
A bela Remédios exala aromas celestiais devido à sua pureza, na imaginária Macondo de Garcia Marques.
Os jardins de Thornfield Hall, no romance de Charlotte Brontë "Jane Eyre", o cheiro de flores, contrasta com os odores austeros de lugares mais desolados, como o internato onde Jane cresce.
O aroma da terra, da urze e das flores silvestres são evocados para criar um cenário selvagem e melancólico dos brejos, do norte da Inglaterra em "O Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Brontë.
O luxo e o glamour da Era do Jazz são frequentemente descritos com perfumes. Daisy é associada a aromas delicados e sedutores, que acentuam sua personalidade mística e irresistível para Gatsby, em "O Grande Gatsby" de F. Scott Fitzgerald.
Cheiros desagradáveis permeiam os bairros pobres de Paris, enquanto ambientes aristocráticos são descritos com aromas refinados, destacando a desigualdade entre as classes sociais em "Os Miseráveis" de Victor Hugo.
Emma Bovary, em "Madame Bovary" de Gustave Flaubert, é frequentemente associada a perfumes sutis e luxuosos, refletindo sua busca por romance e fantasias refinadas. A narrativa usa aromas como forma de contraste entre seu mundo idealizado, e a monotonia da vida provincial.
Em muitas narrativas, o perfume é uma extensão da personalidade ou da pureza dos personagens. O olfato é também responsável, em grande parte, pelo sabor dos alimentos e bebidas, medeia múltiplos prazeres estéticos e alerta sobre perigos. Muitos destes atributos são relativos às emoções e aos prazeres, aprendidos ou alterados ao longo do tempo.
Os hospitais, por onde passei muitos dos anos da minha vida, são lugares de muitos odores. Alguns deles impregnaram as minhas memórias como marcas indeléveis, registros de acontecimentos marcantes, que me acompanham por toda a vida.
No meu primeiro ano de internato, o quinto ano do curso de medicina, a clínica de pessoas queimadas ficava no décimo andar do hospital. Tinha uma porta que permanecia fechada, e no seu interior um grande pavilhão com dezenas de leitos onde adultos, homens, mulheres e crianças repousavam envolvidas em bandagens, que por vezes cobria a maior parte do corpo, e muito pouco se podia ver de quem estava dentro daqueles envelopes humanos.
O odor que se fazia sentir já na porta da entrada era perverso. Eram cheiros de peles humanas queimadas, misturados com cheiros de pomadas e unguentos, e isto custava a abandonar as nossas narinas, mesmo quando já se passavam muitos dias longe daquele lugar.
Crianças choravam e nós, os alunos, tínhamos como uma de nossas tarefas, calcular o percentual de área queimada nos novos pacientes que chegavam diariamente.
Havia duas figuras humanas desenhada em uma cartolina, com a representação da parte da frente e da parte de trás da pessoa. Ali deveríamos marcar com caneta as partes comprometidas pelas queimaduras. Era nos ensinado, que quando a queimadura atingisse mais de 70% de área da pele, esta pessoa certamente morreria. O corpo queimado nesta extensão perdia os líquidos numa velocidade que era impossível de se repor.
No dia de um dos meus plantões no pronto socorro, uma moça de olhos verdes e cabelos longos, chegou trazida por familiares. Havia sido atacada pelo namorado ciumento, que lhe atirou um frasco de álcool no corpo e ateou fogo. Ela parecia anestesiada no meio da dor. Falava de forma intensa e meio desconexa. Estava trêmula e muito assustada.
O chefe do plantão orientou ministrar uma injeção de morfina, enquanto os demais médicos assistentes faziam infusões de líquidos diversos. Como membro menos qualificado daquela equipe, eu acompanhei o desenrolar da internação daquela moça. Peguei a prancheta com as figuras desenhadas em cartolina, com frente o verso de um corpo humano, e calculei a área do corpo que estava queimada, conforme as instruções que me haviam sido passadas.
A pele do rosto estava pouco comprometida, ao contrário do dorso das suas mãos. Deduzi que as mãos foram colocadas sobre os olhos no momento do fogo. A pele se soltava sobre o tronco. No resto do corpo poucas áreas tinham sido poupadas. Fiz os meus cálculos, desenhei na cartolina sobre uma prancheta, e estimei que mais de 80% de área da pele da moça estava queimada. Levei aquela cena para casa, e foi difícil me esquecer dela.
Retornei ao leito da moça nos três dias seguintes para vê-la, envolvida em bandagens. Ainda me lembro daquele cheiro. Lembro-me dos parentes agitados no saguão. A mãe amparada em um canto silencioso do corredor.
Quando retornei no quinto dia a moça não estava mais lá. Confesso que não procurei saber mais detalhes do caso. Demorou várias semanas para eu tirar aquele olhar em pânico da moça das minhas retinas, e o cheiro de queimado persistiu por meses em minhas narinas.
Odores, temores, amores e rancores, são palavras que rimam. Para o bem ou para o mal.
Ainda bem que podemos sentir também o cheiro agradável da terra molhada, o aromático do alecrim no vaso plantado, o suave da rosa que desabrocha sem avisar, o refrescante da hortelã no canto da horta, o picante da malagueta. E o cheiro inconfundível da companheira.
São todos, os cheiros da vida.
Texto original de: https://jesus814.substack.com/p/os-cheiros-da-vida






Comentários