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Um dilema bioético

Imagem do Eudes Quintino de Oliveira Júnior

por Eudes Quintino de Oliveira Júnior




Recordo-me de uma peculiar situação, que chamou muito minha atenção para um dilema eminentemente bioético, em que uma mãe invocou a tutela jurisdicional em desfavor do próprio filho, portador de plena capacidade de discernimento, com o objetivo de obrigá-lo a se submeter a sessões de hemodiálise, vez que era portador de uma doença que impedia o funcionamento normal dos rins. O filho, com 22 anos de idade, que já se negara a realizar o procedimento de transplante em duas oportunidades, entendeu que a recusa ao tratamento era direito seu.


Todas as vezes em que um tema com perfil bioético como o relatado bate às portas da Justiça, em razão da inusitada articulação, provoca sempre muitos questionamentos relacionados com a própria complexidade do homem e de sua determinação com relação à vida e à morte. 


A cultura do povo brasileiro apresenta dogmas inquebrantáveis a respeito da vida e, a própria Constituição Federal conferiu a inviolabilidade necessária para a preservação do direito à vida. Assim, diante destas ponderações, é mais adequado entender que a mãe esteja agindo de forma correta e até mesmo providencial, pois pretende conferir a necessária assistência médica ao filho. Porém, já não é mais detentora da legitimidade de pleitear benefícios em favor dele, em razão de sua maioridade e capacidade para a realização dos atos da vida civil. Mas, não se pode negar também que é difícil aceitar uma conduta passiva da mãe diante da recusa do filho em se cuidar.


O imbróglio ganha proporção maior quando vem à tona o princípio da autonomia da vontade do paciente, um dos basilares da bioética, consagrado de forma definitiva no Código de Ética Médica, (resolução CFM 2.217/18), que confere a total liberdade de manifestação diante de opções médicas apresentadas para o enfrentamento de uma determinada doença, cabendo ao paciente aceitar uma delas ou a todas recusar, de acordo com seus critérios de conveniência.


O homem, na imensidão dos direitos humanos conquistados, ingressou numa esfera protetiva individualizada, de tal forma que o profissional da área da saúde, que fez o juramento hipocrático, dentre eles o de lutar pela prevalência da vida humana, vê-se obrigado a se curvar diante da manifestação de qualquer direito assegurado ao paciente. O paternalismo, que durante muitos anos imperou na ars curandi, passa agora pelo crivo da justiça e somente poderá levar adiante o propósito profissional se não ferir as camadas protetivas da cidadania.


Estabelece-se, desta forma, um patamar de Justiça na colidência existente entre a intervenção médica, que seria a recomendada para a moléstia, e a negativa do paciente em autorizá-la, de acordo com a sua capacidade de autogoverno. Com a precisão acadêmica que lhe é peculiar, Gracia, enaltecendo o direito do paciente, enfatiza: "Este é quem tem de dizer o que considera bom para si, não o profissional. Não se pode fazer as pessoas felizes à força. Ou melhor, há que deixar que cada um viva de acordo com sua ideia de felicidade".1 Quer dizer, a decisão do paciente é tão importante que supera até mesmo a recomendação médica, baseada no princípio da beneficência, para a realização de um determinado procedimento que possa produzir resultados satisfatórios, como também a súplica familiar para anular a resistência ao tratamento.


No caso examinado a Justiça agiu cum grano salis, com a cautela recomendada. De um lado foi confirmado que o paciente reúne todas as condições de discernimento com relação à sua conduta, embora apresente, por outro lado, imaturidade afetiva e emocional, circunstância que, por si só, autorizou a medida pleiteada. É racional para entender a gravidade do caso, mas, ao mesmo tempo, ignora o esforço familiar para reverter seu quadro clínico para que possa obter um resultado satisfatório e equilibrar sua saúde.


Mas não se pode dizer que o filho esteja infringindo qualquer conteúdo legal. Pelo contrário. A Constituição Federal, no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos assevera que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". A legislação brasileira, que preza a vida como um bem indisponível e merecedor de toda tutela estatal, por sua vez, não estimula a prática do suicídio e muito menos permite a realização do suicídio assistido. Mas, respeita a decisão da pessoa humana diante da recusa de se submeter a um tratamento médico recomendado. Fala mais alto a voz da consciência do paciente do que todo aparato médico colocado à sua disposição. Na realidade, ele não está fazendo a opção pela morte e sim pela não realização de tratamento, que não trará qualquer benefício.


É até difícil aceitar esta nova postura sabendo que a recusa ao tratamento poderá acarretar danos maiores à saúde. Mas o divisor agora determinante é justamente a autonomia da vontade do paciente, encartada definitivamente na dignitas hominis. O filósofo italiano Ordine, em seu reconhecido manifesto, fazendo referência a Pico Della Mirandola, revela que a dignidade humana se baseia no livre arbítrio e proclama que "quando Deus criou o homem, não podendo atribuir-lhe nada específico, porque tudo já havia sido concedido aos outros seres viventes, decidiu deixá-lo indefinido, para conceder a ele mesmo a liberdade de escolher o seu próprio destino".2

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1 Gracia, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2010, p. 313.


2 Ordine, Nuccio. A utilidade do inútil: um manifesto. Tradução Luiz Carlos Bombassaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 155.


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